Interessantemente, no que concerne outras práticas religiosas, os não-membros do PCCh tendem a ser mais religiosos do que os membros. Mas a explicação para isso é muito simples: os membros do PCCh em sua maioria não tem religião...mas são confucionistas. Celebram todos os ritos e festas confucionistas, cultuam os ancestrais, provavelmente vão aos templos confucionistas (os quais são, aliás, subsidiados pelo Estado), cultivam as virtudes confucionistas. Ou seja, o confucionismo "puro" parece ser bastante popular entre os membros do Partido, enquanto o resto da população é mais adepta tanto do shenismo misturado com elementos confucionistas, do budismo e do taoísmo. Não obstante, 40% dos membros do PCCh pratica o feng shui, e pelo menos 18% deles acende incensos várias vezes ao ano para Buda ou para os deuses.
No que concerne as relações Estado-Religião, aliás, em primeiro lugar, é importante apontar que o Estado chinês sempre atribuiu a si mesmo a prerrogativa de controlar, tutelar, influenciar e suprimir as várias seitas, escolas e doutrinas que tentaram se espalhar pela China. De modo que o fato do PCCh pretender exercer influência sobre o Cristianismo, o Taoísmo, o Budismo, etc., através de instituições alinhadas ao Estado, significa apenas que o PCCh é continuísta no que concerne a típica relação entre essas esferas na China. Ademais, muito se fala sobre o "controle negativo" imposto pela China, mas quase não se fala que a China visa limitar o crescimento de religiões especificamente estrangeiras, mas há vários anos subsidia e fomenta a abertura de novos templos e a educação de novos sacerdotes budistas, taoístas, confucionistas e shenistas. O resultado é um crescimento, por exemplo, de 300% na frequência a templos budistas desde 2023, com a maioria dos frequentadores sendo jovens.
Retornando, ainda, ao confucionismo, o Estado começou a restaurar recentemente os guoxue nas escolas, ou seja, o estudo dos Clássicos confucionistas, os quais no passado eram pré-requisito para a aprovação nos exames imperiais. Ademais, existe uma forte corrente intelectual que defende a institucionalização do confucionismo e sua transformação em religião civil oficial. Apesar de isso parecer distante, na prática, o Pensamento Xi Jinping já representa uma síntese entre maoísmo e confucionismo, o que fica bastante explicitado na maneira não-dualista pela qual a China hoje aborda a questão das classes sociais.
Deixando de lado a adesão e a prática religiosas, poderíamos nos desviar para a observação dos valores tradicionais chineses. O "comunismo" desenraizou ou desestruturou de forma fundamental os valores tradicionais da China?
Para isso temos que entender quais são esses valores. O intelectual russo Nikolai Mikhailov enumerou uma série de conceitos, princípios e afetos que compõem a cosmovisão tradicional chinesa, alguns dos quais podemos citar: "Mundo como harmonia inerentemente perfeita entre o Céu e o Homem, como um equilíbrio natural e harmonioso de opostos, cuja violação implica a deterioração da natureza e do homem", "Presteza, responsabilidade, pragmatismo, religiosidade cotidiana", "Percepção da sociedade como uma 'grande família', onde os interesses do indivíduo estão subordinados aos interesses da família, os interesses da família aos interesses do clã e os interesses do clã aos interesses do Estado", "paternalismo e tutela dos mais velhos sobre os mais novos", "hospitalidade", "moderação", "dignidade, humildade, obrigação, observância de tradições e cânones, respeito à hierarquia social, piedade filial, veneração aos antepassados, patriotismo, subserviência aos superiores, senso de dever e justiça social".