Se fizermos uma pesquisa arquivística nas matérias produzidas pela mídia de massa brasileira sobre o conflito ucraniano uma coisa saltará aos olhos: nenhum jornalista da Globo, da Folha ou de qualquer outra dessas mídias jamais pôs os pés no Donbass desde 2014.
Não há, nessas mídias, o menor espaço dedicado aos habitantes daquilo que à época era o leste ucraniano e hoje é o sudoeste russo. É como se Donetsk e Lugansk fossem "terra de ninguém", inexistissem no mapa. Seus habitantes viviam num limbo midiático, completamente esquecidos e ignorados.
Eu acompanhei isso em tempo real porque cubro a situação ucraniana como jornalista desde o final de 2013. Em 2014 não havia espaço dedicado a revelar a verdade sobre o Maidan e sobre a Guerra do Donbass senão a minha página de Facebook. Depois, aos poucos, foram aparecendo algumas outras fontes de informação.
8 anos depois, o livro do Eduardo Vasco, "O Povo Esquecido", ainda é um dos poucos trabalhos jornalísticos brasileiros dedicados aos homens, mulheres e crianças do Donbass. Não à geopolítica, tampouco às raízes históricas profundas do conflito, mas às pessoas simples que sofrem quotidianamente por um conflito iniciado não em 2022, mas em 2014.
A obra é resultado de uma viagem feita por ele poucos meses após o início da operação militar especial e que o leva da Rússia à República Popular de Lugansk.
De um modo geral, o livro se apoia nas conversas travadas por Vasco com transeuntes russos e novorrussos, bem como nas entrevistas que ele conseguiu com algumas lideranças sociais e autoridades locais.
Ele perpassa, na Rússia, pelas condições socioeconômicas do país sob sanções e em conflito, bem como questiona pessoas comuns sobre suas opiniões do conflito. Também dialoga com organizações sociais envolvidas na ajuda humanitária aos novorrussos.
É em Lugansk, porém, que ele toma contato direto com a realidade vivida e sofrida pelos cidadãos há 8 anos (hoje, já há 11 anos). Vasco é testemunha de bombardeios contra alvos civis, conhece órfãos e mutilados, conversa com voluntários locais que lutam desde o começo, praticamente sem folga, contra o Exército Ucraniano e as milícias neonazistas.
Com as autoridades, colhe mais detalhes sobre como tudo começou, sobre o Maidan, sobre a decisão irracional de Kiev de banir o idioma russo (em um país em que boa parte da população só fala esse idioma) que levou ao início de protestos no leste, e sobre a decisão ainda mais insana de Kiev de responder a protestos inicialmente pacíficos com tiros de fuzil e bombardeios - levando, assim, à resistência armada.
Vasco encontra comunistas e monarquistas, todos lutando juntos pela mesma causa. Também se depara com a realidade profundamente religiosa dessa parte do mundo, onde todos - até os comunistas - têm ícones e oram a Deus por liberdade e proteção. Se depara também com uma realidade étnica complexa, onde todos possuem parentes dos dois lados da fronteira e onde muitos dos que lutam pela Rússia se identificam mais como ucranianos do que como russos (tal como boa parte da elite política ucraniana fala apenas russo, em vez de ucraniano).
Em suma, o trabalho feito aqui não é apenas jornalístico, mas também antropológico, e tem como principal valor pôr em descoberto um povo cuja existência é negada pelo Ocidente, mas que resistiu sozinho por 8 anos lutando sem parar, e ainda hoje anseia pela paz.