Sobre o golpe militar de 1964 aquilo que mais me espanta é o quão central o evento e o período inaugurado por ele foram para a construção dos imaginários da direita e da esquerda - raiz, portanto, da polarização atual.
De resto, apesar de ser o período mais dramatizado e debatido, não me parece ter sido a época mais determinante do século XX no nosso país. O centro da história brasileira no século XX não é o período militar, rebarba marginal dos impulsos estadunidenses por garantir seu "quintal" no acirramento da Guerra Fria.
A direita trata como um momento de "salvação", a esquerda como se tivesse sido a interrupção de um glorioso e inevitável caminho.
A realidade é que o governo de João Goulart já estava extremamente fragilizado e instável, com poucas chances de sucesso mesmo que não tivesse havido golpe militar. João Goulart tinha ótimas intenções e uma boa equipe de ministros, mas pegou o país no pior momento possível, e a postura dele não era a adequada para o país naquele momento. O Brasil, em 1964, não tinha necessariamente qualquer caminho pavimentado para se tornar a China, sendo sincero.
Do outro lado, evidentemente os militares não salvaram o Brasil de nada. Não havia revolução comunista sendo preparada, nem por João Goulart, nem por qualquer movimento de massas. A revolução armada era o delírio infanto-juventil de uns quantos universitários e militantes profissionais enfeitiçados pelo guevarismo. O mito da "ameaça comunista" sempre não passou de um espantalho e o fato do golpe ter se dado em 1 de abril, o Dia da Mentira, é bastante condizente.
Boa parte das tendências negativas do Brasil já estava posta e só se aprofundaram nesse período. Os militares nada fizeram contra o progressismo moral e cultural da época - preocupados que estavam com o bicho-papão comunista - ao contrário, ajudaram a promovê-lo. Sob o governo dos militares, aliás, se entrincheiram as facções criminosas recém-nascidas com apoio de oficiais de baixa patente. Mas o problema das favelas, que é a raiz do problema, foi herdada dos governos anteriores pelos militares.
Por outro lado, no plano econômico, o regime militar deu continuidade parcial ao desenvolvimentismo trabalhista, ainda que de forma mais errática e às custas de um imenso endividamento com a Banca internacional.
Em alguma medida o período foi bastante relevante para a cultura brasileira. Mas isso fundamentalmente pelas conexões íntimas entre os artistas do Rio de Janeiro e a própria Rede Globo, e pelo fato de que após a queda do regime militar os artistas da época foram retroativamente consagrados como "gênios", também pela Globo. Ademais, muitas das tendências culturais da época já estavam em gestação ou se desenvolvendo, como a bossa nova. Nada disso foi especificamente por causa do regime militar, apesar de que já naquela época Caetano Veloso e sua turma já gostavam de simular e performar "resistência política" (quão pouco o mundo mudou!).
Mais significativo e diretamente ligado à ditadura militar foi a introdução da USAID no Brasil. Mas o Brasil já era fortemente influenciado pelos EUA; não obstante, a USAID formalizou o controle exercido por Washington sobre os currículos brasileiros.
No campo positivo, para compensar, foi também nesse período (mais especificamente sob Geisel) que o Brasil voltou a ter uma política externa soberana depois de décadas. Mesmo a política externa de Goulart foi mais tímida que a de Geisel e se fôssemos comparar ambos, na prática, Goulart quase pareceria sionista perto de Geisel. Isso, tal como o projeto da bomba atômica, foi efêmero. Nada disso perdurou.
O programa nuclear brasileiro, por outro lado, de fato pertence a essa época e perdurou mesmo após o fim do regime militar, apesar da democracia praticamente tê-lo abandonado.